Migalhas do Saber
Ainda não vi nesses tempos de stalking digital versão para um mantra de falta de humildade. Se diz que grande parte dos “doutores”, se pudesse, compraria cobertura triplex para acomodar, em cada pavimento, a si mesmo, seus títulos e o ego. Ácida, a crítica contém carapuça nos que colocam a titulação acadêmica como um fim em si e não meio de desenvolvimento profissional e, sobretudo, pessoal. Tocar nesse assunto é sempre importante. Especialmente agora que baixou a poeira do caso do professor Carlos Alberto Decotelli. Este foi um entre tantos. Apenas o mais visível e explorado neste ano. E escrevo no intuito de sugerir – aos que se dispuserem a dar importância, claro – atitudes e conselhos que sirvam como poções contra os venenos do ego e permitam um tipo de auto teste para exposição equilibrada de conhecimentos. Isso é importante porque a titulação acadêmica precisa ser entendida naquilo que representa de fato: marco na vida profissional do indivíduo que se dispôs a dedicar tempo razoável em estudos e pesquisas, muitas em campo, para colaboração no avanço de um determinado campo de conhecimento. O primeiro passo, ou poção, é a compreensão dos fundamentos que levam ao crescimento na profissão agregada pela especialização na academia. Estudos refletem práticas. Essa premissa é muito relevante para que a experiência profissional não seja deturpada e muito menos posta de lado, como se valor não tivesse. Muito pelo contrário. A primeira coisa a ser destacada na vida profissional é a atividade no front. O conjunto de vivências permite rica coleta de dados, reflexões e base para análises consistentes de sua capacidade, especialmente no mundo acadêmico. Consistência de trabalhos. Na medida em que se trabalhe num determinado campo profissional, será determinante a consistência na atuação. Conhecer detidamente atividades significa buscar, por si próprio, entender e dominar as temáticas com quais lida. Com foco, desprovido o máximo possível de distrações. Como Will Durant nos ensina ao decifrar Sócrates: “Nós somos o que repetidamente fazemos. A excelência, então, não é um ato, mas um hábito”. Qualidade de resultados. Essa é parte que há anos me incomoda por toda a carga de subjetividade que envolve. Na medida em que alguém se propõe a trabalhar em algo, deve focar nisso, pois precisa entregar algo para alguém (e a si próprio num ato de satisfação), a qual chamamos de resultado. Feita a entrega, o receptor do produto ou serviço inicia processo de avaliação da qualidade. Em todas as situações, esta análise é um juízo de valor de quem recebe, jamais de quem faz. A satisfação de um nada tem a ver com a do outro. Mesmo que digam que sim. É a constatação deste incômodo, repetidas vezes, que nos leva à curiosidade acadêmica. Curiosidade Acadêmica. O maior valor da ciência acadêmica é a sua estrutura contínua de desafios. Em cada campo do conhecimento, desbravadores e seus discípulos deixam temas em aberto. São munição para aríetes intelectuais que tentam superar as muralhas do saber humano. Assim, o que vale é a busca para entender o que se construiu de uma área até o momento e ver quais pontos foram lançados às gerações futuras para serem assumidos e desenvolvidos. Autodidatismo como razão de viver. Um verdadeiro curioso pelo conhecimento tem olhar arguto sobre a academia e o tema que lhe interessa. A curiosidade o leva para a busca de informações, a apuração da lógica entre as teses, a comparação com a realidade prática, à dualidade complementar da prática com a teoria. Antes de procurar ser, detém os princípios elementares do saber do autodidata. Ao compreender que tanto sabe, sente-se apto para ser orientado para subir a novo patamar. Stricto Sensu e Lato Sensu. A paixão nos leva a desafios que começam por tomadas de decisão importantes. E estas, na medida em que se desenvolvam, precisarão estar bem claras nos currículos. Afinal, uma coisa é você se aplicar para desenvolver conhecimentos acadêmicos numa pós-graduação stricto sensu e outra é cuidar do aprimoramento de habilidades e atualização numa determinada área por meio de pós-graduação lato sensu. Ambas são importantes, mas de percepção distinta para quem olha seu currículo. Dentro do contexto exposto somos todos profissionais atuantes e de alguma forma titulados. Mestres e doutores. Especialistas. Professores Visitantes. Detentores de notório saber. Somos às vezes mais, outras vezes menos, reconhecidos do que merecemos ou precisamos. Mas o importante é estar ali, na boa causa, na boa luta. Escrito isso, trilhado o caminho – nunca fácil – mostrado acima, pode-se indicar as normas objetivas para que uma pessoa se mostre ética nas informações sobre si mesmo e respeitoso para com o mundo acadêmico e profissional: 1. Honestidade intelectual nos dados Mostre o que você é. A soma de tudo o que descreve é você. Não pré-julgue. Tendemos a ser tão críticos sobre nós mesmos que damos importância maior ao que entendemos como defeitos do que às nossas habilidades. 2. Precisão na exposição dos títulos Exponha de forma objetiva o que fez, em qual instituição, o resultado desse esforço, a contribuição intelectual proposta, as conclusões e seus desdobramentos, como publicação do estudo, artigos, livros, palestras etc. 3. Permitir rápida checagem de conhecimentos Informe sobre seus orientadores e a forma como esses dados podem ser vistos em detalhes e compartilhados, quando possível. Diversas entidades têm bancos de teses consultáveis. 4. Estar indexado à Plataforma Lattes, se cabível Uma referência importante, embora não seja a única. Neste espaço as pessoas com interesse em melhores dados encontram parâmetros adequados. Com estes cuidados, evitam-se exageros, más interpretações, mal-entendidos e constrangimentos desnecessários. Ao se impor um forte nível de auto-respeito, de imediato poderá exigir que seja respeitado por quem quer que seja, independente do cargo, função e títulos que a outra pessoa tenha. Os sem mestrados e doutorados não são menos inteligentes, menos importantes. Têm capacidades distintas que exigem ser reconhecidas e valorizadas. Nos ensina a biografia de Vivien Theodore Thomas, encanador que demonstrou ser possível tornar efetiva a técnica inovadora para correção da Síndrome do Bebê Azul teorizada por Alfred Blalock, um dos maiores cirurgiões cardíacos da história da medicina. Thomas, que enfrentou a pobreza e o racismo (inclusive para acessar os laboratórios que permitiriam desenvolver sua técnica), foi professor dos que viriam a se tornar os maiores cirurgiões cardíacos norte-americanos por décadas. Em 1976 obteve o título de Doutor Honorário na Universidade John Hopkins. Essa história pode ser lida no artigo “Something the Lord Made”, escrito por Katie McCabe e publicado no Washingtonian e assistida no filme Quase Deuses, de 2004, disponível nos principais streamings de vídeo.