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A arte e as artes de juristas eminentes

“As letras da lei – contos”, editada pela Casa da Palavra, reúne curtas obras de ficção de juristas bem conhecidos, como Eros Grau e Miguel Reale Júnior.

 

Os juristas – juízes, advogados, promotores – talvez estejam entre os maiores conhecedores da alma humana. Afinal, eles não se limitam à fria leitura de códigos, autos e petições, ou à redação de pareceres: têm de entrar sempre, em cada caso, em contato próximo e mesmo íntimo com pessoas, sejam criminosos, vítimas, testemunhas, policiais, peritos, lidando sempre com emoções ou ambições. Lidem com seres humanos levados pelas necessidades do coração, lidem com pessoas levadas pelas ansiedades do bolso, os juristas, por força de sua própria profissão, conhecem profundamente os desvãos das emoções humanas. Por isso mesmo, além de cultivarem as letras jurídicas, os estudantes e os profissionais do Direito se destacam, entre todas as profissões, como grandes cultores das chamadas belas-letras, em especial dos ficcionistas que mais mergulharam nas luzes e sombras dos mais recônditos recantos escuros e das mais iluminadas pulsações dos corações humanos.

Isso está claramente demonstrado por essa pequena coletânea ‘As letras da lei – contos’, editada pela Casa da Palavra, que reúne curtas obras de ficção de juristas bem conhecidos, como Eros Grau e Miguel Reale Júnior. A brilhante ideia de reunir esses autores e esses contos foi de Pierre Moreau, advogado e professor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, formado em Harvard. Organizador do volume, Moreau diz, na apresentação, que, ao cursar em Harvard a cadeira de Lei e Literatura, se deu conta de que, para o fundador dessa disciplina, o célebre jurista americano Benjamin Cardozo, esse curso ‘era uma forma de permitir que os estudantes de Direito pudessem ter em Shakespeare, Dostoiévski, Kafka e outros autores conhecidos os subsídios para a construção do próprio discurso e para o aperfeiçoamento da escrita jurídica’.

Desde então, Moreau concebeu ‘o plano de tornar prática a reunião de escritos literários assinados por advogados de renome’, agora concretizado. O volume abre com um conto de Eros Grau, professor titular da Universidade de São Paulo e ministro aposentado do Supremo Tribunal Federal, já conhecido como ficcionista. Trata-se do conto ‘O ombro de A.’ São divagações sobre os ombros de uma mulher a qual o narrador viu apenas uma vez na vida: ‘Três palmos nos afastavam. Havia apenas o infinito entre nós. Não somente três palmos pela frente, na mesa que ela ocupava. Uns quatro lateralmente. Eu na mesa ao lado. Absolutamente por acaso. Mas estivemos juntos por um instante. Como se fosse para sempre. Usava uma blusa decote canoa, dois ou três dedos abaixo do pescoço, de modo que apenas os seus ombros, um de cada vez, jamais os dois, eu os podia ver. No espaço de mínimos segundos, por conta de um breve gesto seu, a blusa escorregou e vi-lhe o ombro direito e a alça do sutiã. Naquele ponto do ombro próprio ao repouso das alças dos sutiãs. Nossos olhos se encontraram, ela se aprumou, percebi que enrubescia. Não mais do que alguns segundos de nudez e o infinito entre nós’.

Ele nunca mais a viu, em toda a sua vida desde então. Mas guardou para sempre a lembrança daquele ombro fugaz, que, muitos anos depois, julgava reconhecer em outras mulheres, ao vê-las, por exemplo, na televisão. Cada vez que se lembrava desse ombro, ficava imaginando como sua vida teria sido diferente se tivesse se aproximado daquela mulher. A delicadeza desse conto lembra as sutilezas de Machado de Assis em ‘Uns braços’ ou em ‘As mãos de Sancha’.

Já Miguel Reale Júnior, também professor titular da USP e ministro da Justiça no governo de Fernando Henrique Cardoso, se inspirou na própria profissão no conto ‘O anel de rubi’, ou seja, um anel de bacharel em Direito. Estava no dedo anular da mão direita de ‘um homem com cerca de cinquenta anos, de passo trôpego e o casaco trazendo uma mancha amarela de gordura’, que entra num bar diante do qual brincam crianças. ‘Ao descobrir a garçonete, assinalou com a cabeça e com a mão para que lhe trouxesse a bebida habitual. A moça logo levou-lhe um copo médio de chope. O movimento das crianças e da rua poderia ser objeto de sua atenção, mas seu estado absolutamente impassível mostrava nada registrar, o olhar vazio, o rosto sem qualquer reação. Vez ou outra batia os dedos, de unhas sujas, no tampo da mesa, mas na maior parte do tempo estava absolutamente estático, ausente’. Assim, com maestria digna de Eça de Queiroz, se abre uma história que se embebe de grandeza e de melancolia.

O jurista Eduardo Muylaert, além de seu conto, contribuiu também com belas fotografias que acompanham os textos. Outros autores são José Alexandre Tavares Guerreiro, Luís Francisco Carvalho Filho, Luciana Gervoic, Luiz Kignel, José Gregori, José Renato Nalini, Marcelo S. Barbosa e Denis Borges Barbosa.